De repente, em Portugal, há “especialistas” em epidemiologia e saúde pública em cada canto. Vêm sobretudo da direita pouco ou nada democrática. São inconfessados admiradores de Trump e Bolsonaro, porque parece que fica mal. Passam por “gurus”. Não querem ouvir os verdadeiros especialistas, aliás pretendem pôr em causa a sua competência, e distorcem o que a ciência diz. Tudo muito perigoso, especialmente porque não faltam teorias da conspiração mirabolantes. O problema não é só omitirem que a gestão de uma situação de epidemia do ponto de vista da saúde pública tem de levar em conta as características do surto, a situação epidemiológica em cada momento, e a capacidade instalada de prestar cuidados de saúde à população. Não é fácil imaginar o que diriam hoje se o nosso Serviço Nacional de Saúde tivesse colapsado ou se as mortes fossem quase o quadruplo das registadas em Portugal (como na Suécia, país com a mesma população). A questão é projectarem no passado a situação do presente, fruto de uma gestão cautelosa das autoridades de saúde. Fazem o mesmo com o próprio conhecimento da COVID-19, como se em Janeiro a comunidade científica soubesse o mesmo que sabe em Maio. Ao mesmo tempo, continuam a repetir falsidades como a ideia de que a letalidade da COVID-19 é comparável à da gripe, para a qual há vacina, quando os números actuais mostram que é cerca de quatro vezes superior — e o novo coronavírus é muito mais contagioso. No seu imenso entusiasmo pelo desconfinamento à bruta e à balda não há qualquer lugar à dúvida, à precaução, razão pela qual não comentam os focos que mostram como a propagação expõe desigualdades sociais e atropelos laborais, que as medidas governamentais não resolveram nem conseguiram evitar que se agravassem. Sobre isso nem uma palavra. Vivem noutro país, o do privilégio sem pudor que nunca está em perigo.
A Protecção da Saúde dos Trabalhadores como Direito
Já vai em 70, os trabalhadores da Sonae na Azambuja infectados. Ouçam a Secretária-Geral da CGTP-IN, Isabel Camarinha, nesta peça. A garantia de segurança e saúde no e para o local de trabalho é um direito dos trabalhadores e uma medida de saúde pública que o movimento sindical exigiu atempadamente. Só agora é que grandes empresas como esta estão a implementar, de facto, planos de contingência. Quem embarcou na indignação programada com as iniciativas do 1.º de Maio, que defenderam e exerceram este direito à protecção, que pense sobre isto: é uma evidência que os patrões destas empresas não se importam de colocar os trabalhadores em risco, o que lhes interessa é que a jornada de trabalho seja cumprida e lucrativa. Antes de tudo, defendem o capital. A vida e a saúde dos trabalhadores fica para trás — que se sacrifiquem no altar da exploração económica, não é? Só lhes vale a pressão dos sindicatos que teimam em não os abandonar.
Organizar a Luta
Conheço algumas pessoas que, numa ou noutra ocasião, participaram em grandes manifestações de rua. Acharam que aquela situação ou aquela causa as mobilizava. Muitas vezes depois de uma marcha vão para casa com um sentimento de dever cumprido que pode ser egoísta, mas também de uma frustração que não é fértil, como se aquilo tivesse sabido a pouco e, enfim, não pudesse haver nada além desse pouco.
As participações, seja elas como forem, devem ser valorizadas. É isso que faz um filme como We Are Many (2014), sobre os protestos globais contra a invasão do Iraque em 2003 por uma coligação militar liderada pelos EUA e pelo Reino Unido. Entre os entrevistados contam-se alguns convictos activistas pela paz do mundo do cinema. Eles têm um clara consciência dos interesses económicos que estão na base das agressões imperialistas ao Iraque ou à Síria, mencionada na parte final do documentário.
Podia falar do enorme Danny Glover, actor (sim, esse, o companheiro de Mel Gibson na série Arma Mortífera) e produtor (de Abderrahmane Sissako, Elia Suleiman, Apichatpong Weerasethakul, entre outros). Foi ele que numa das manifestações em Nova Iorque gritou: “Em nosso nome, não.”
Prefiro falar do muito lúcido realizador britânico Ken Loach. Diz ele, comentando as oportunidades que se devem agarrar e potenciar: “Não penso que a marcha por si só podia parar a guerra. Porque as pessoas vão para casa e os governos vivem bem com isso. Com o que não vivem bem é com a organização a sério. E era isso que nós precisávamos que tivesse saído daí.”
Organização. Uma palavra à qual alguma gente de esquerda ainda torce o nariz. Mas sem isso, a luta contra o militarismo, a guerra, o imperialismo, assim como outras lutas, será sempre pontual, inorgânica, intensa num momento para desaparecer logo a seguir. O protesto de rua deve ser a expressão de um trabalho contínuo de organização, intervenção, divulgação, discussão, influência, para quem está verdadeiramente envolvido. Pode responder a um determinado contexto ou questão política. Mas não é um fogacho. É um momento de uma luta que deve continuar enquanto for necessário.
A Função dos Sindicatos
Há quem pense que os sindicatos estão a cumprir o seu função quando dizem que sim sem qualquer razão, quando assinam de cruz, quando dão palmadinhas nas costas do patronato, quando se apressam, ufanos, a ficar bem na fotografia. O papel dos sindicatos deve ser aquele que é assumido pela CGTP-IN, com diligência e combatividade: defender os interesses e direitos da classe trabalhadora, a parte mais fraca das relações laborais vigentes, mas tratada como se não o fosse, como se tudo fosse igual. No contexto desta pandemia, os trabalhadores não têm sido realmente protegidos do desemprego, do empobrecimento, do abuso, do risco, da calamidade. Haja quem os defenda sem olhar para o seu próprio umbigo.
Nos 33 Anos da ID
A Associação Intervenção Democrática – ID integra uma história com firmes raízes na luta pela democracia em Portugal. Em particular, no MDP/CDE, grande organização de oposição ao fascismo desde 1969 que deu um valioso contributo político depois do 25 de Abril de 1974. A partir de 1987, a ID continuou a cumprir objectivos semelhantes como associação política e espaço extra-partidário: congregar pessoas assumidamente progressistas e intervir na vida cultural, social, e política portuguesa. Esta intervenção visa conhecer e transformar a realidade nacional para construir um país mais democrático e socialista — nomeadamente, como parte activa em processo eleitorais no âmbito da CDU – Coligação Democrática Unitária, junto com o Partido Comunista Português e o Partido Ecologista “Os Verdes”.
Trabalho como professor universitário e investigador na Universidade de Coimbra na área do cinema. Além do cruzamento entre a arte e a política nas minhas actividades pedagógicas e científicas, a minha intervenção política tem-se desenvolvido sobretudo em estruturas unitárias, onde há um trabalho colectivo de construção da unidade na acção entre pessoas com diferentes perspectivas. Como sindicalista que age a partir dos valores cristãos da justiça social, da dignidade humana, e da solidariedade, tenho cumprido funções dirigentes no Sindicato dos Professores da Região Centro, membro da FENPROF, e na CGTP-IN. Tornei-me membro da ID porque penso que a associação cumpre, precisamente, esta finalidade fundamental: a convergência de democratas de esquerda em Portugal, com diversos pontos de vista, concordantes na necessidade de superar as contradições da sociedade capitalista. A face mais visível deste esforço de encontro, diálogo, e união é a revista Seara Nova. Foi uma peça chave no combate ideológico contra o fascismo, na qual destacados intelectuais portugueses ligaram a produção de ideias à realidade social. Hoje, a Seara Nova permanece uma publicação vital na batalha das ideias.O Direito Humano à Liberdade Religiosa
Nós respeitamos os sentimentos e as crenças religiosas e a prática do culto não apenas como um direito de todos os cidadãos, mas até como um direito dos militantes do nosso partido (e temos muitos camaradas que são católicos).
— ÁLVARO CUNHAL, entrevistado por Luís Machado e Mário Contumélias, Conversas à Quinta-Feira
Além da Espuma dos Dias
Eu bem queria avançar, mas não me deixam. Seguem-se algumas notas acerca da opinião de Raquel Varela e Daniel Oliveira sobre a iniciativa organizada pela CGTP-IN no Dia do Trabalhador na Alameda, em Lisboa.
Varela argumenta que foram escolhidos (não diz como) dirigentes e activistas para participarem e que isso não corresponde ao espírito do 1.º de Maio. Ninguém sabe isso melhor do que a CGTP-IN, como se poderá ler nos seus comunicados e nas peças jornalísticas que lhes deram eco. A Intersindical organizou a iniciativa tendo em conta as condicionantes existentes. Como os argumentos de Varela raramente têm conclusões, o que deduzo é que, segundo ela, para fazer assim mais valia não se ter feito. Ou seja: ou iam as massas de trabalhadores que costumam encher as ruas ou não ia ninguém. Há ausências que não são presenças. Ela chama-lhe celebração colectiva. Eu chamo-lhe iniciativa colectiva de luta. Outra conclusão mais geral que podemos retirar da sua argumentação é que os trabalhadores não devem eleger ou escolher colegas para funções dirigentes e de representação nas suas organizações de classe. Parece assim sugerir que essa eleição ou escolha os apaga, embora estejam a exercer direitos democráticos. Se esta ideia for para ser levada a sério, ela é contrária à própria noção de organização sindical. Fico-me por aqui.
Oliveira reconhece que se cumpriu a lei e os cuidados sanitários, mas teme, diz ele, que se tenham criado fracturas entre trabalhadores. Diz que a CGTP-IN não avaliou bem o sentimento que se instalou no país. Há um sentimento de medo confuso criado no espaço público, por fazedores de opinião e informação parcial ou enganosa, com o qual a Intersindical não compactua, porque distorce a realidade. A Central tem acompanhado todos os sectores de actividades e as gritantes dificuldades dos trabalhadores em cada um deles. É, precisamente, por conhecer o justo sentimento de indignação de quem perdeu o emprego ou parte da remuneração e viu os seus direitos serem desrespeitados, como se nada valesse, que considerou necessário marcar o 1.º de Maio como uma jornada de luta na rua. A representatividade da iniciativa em Lisboa e de outras acções em mais 23 localidades (não esquecer, cada uma com a sua escala adequada) permitiram dar voz a problemas e reinvindicações, de âmbito mais específico ou mais abrangente, com a solidariedade que deve unir todos os trabalhadores.
A espuma dos dias não é um diapasão para a história do movimento operário e sindical. A esse movimento exige-se que saiba estar à altura do momento histórico, com os instrumentos de que dispõe. Orgulho-me de que a CGTP-IN tenha sabido corresponder àquilo que a sua base reclamava e as reacções dos trabalhadores nesse dia e nos dias seguintes confirmam isso. Ontem houve um protesto no complexo industrial de Sines denunciando a distribuição de dividendo a accionistas, enquanto são impostos despedimentos a centenas de trabalhadores e cresce a calamidade social. É fácil perceber que esta acção, cumprindo rigorosamente as indicações das autoridades de saúde, é um resultado das iniciativas do Dia do Trabalhador. Mas isto não é mostrado nas notícias nem é objecto de debate.
Cumprir o Papel de Democrata
Notícia: “Ventura quer que que comunidade cigana tenha plano de confinamento ‘específico’”. André Ventura continua a soltar o fascista e o racista que há nele. É preciso dizer um sonoro não. A Constituição da República Portuguesa barra-lhe o caminho, daí o seu discurso sobre a refundação da República na Sessão Comemorativa do 25 de Abril no Parlamento. Ventura não participou para comemorar, mas para destruir — e não o escondeu. Quem é democrata deve cumprir o seu papel de resistência e de combate a este convite ao retrocesso.
O 1.º de Maio da CGTP-IN
As iniciativas que a CGTP-IN realizou no 1.º de Maio em 24 localidades deram voz aos milhões de trabalhadores que em Portugal estão a sofrer as consequências das opções e desequilíbrios das medidas decididas no plano económico e social, que estão a ser brutalmente agravadas no quadro do surto epidémico e da necessidade de encerramento de algumas actividades e confinamento de grande parte dos trabalhadores e da população.”
Columbus, Ohio
Este protesto de profissionais de saúde decorreu ontem em Columbus, Ohio, mantendo a distância entre pessoas indicada pelas autoridades de saúde. Tal como em Portugal, o que aqui vejo é um exemplo de civismo, com algo de didático em relação às regras sociais que devem ser observadas em defesa da saúde pública, e o exercício que direitos democráticos que se tornaram vitais devido à pandemia. Enviado pelo Pedro Schacht dos EUA, a quem a agradeço.
SNS
Não são casos únicos, longe disso, mas li hoje Tiago Rodrigues e ouvi Rui Tavares e encontrei a mesma expressão: Sistema Nacional de Saúde. Aquilo que alguns acharão um preciosismo, não é. Soa parecido, mas não designa a mesma coisa. Serviço Nacional de Saúde não é o mesmo que Sistema Nacional de Saúde. A discussão política em torno da saúde em Portugal tem mesmo sido entre quem defende o fortalecimento do Serviço Nacional de Saúde, construído depois do 25 de Abril como uma enorme conquista social, e a sua destruição para implementar um sistema nacional de saúde. Este sistema teria dois sub-sistemas e é um projecto de uma marcada divisão entre classes: um serviço público com poucos recursos para os mais pobres que garantisse o acesso aos cuidados de saúde básicos e outro para quem pudesse pagar a prestação de cuidados pelo sector privado. Ou seja, não é o serviço universal, geral, e gratuito, pilar de um desenvolvimento justo e solidário, que está inscrito na Constituição da República Portuguesa. Quem se diz progressista e de esquerda devia saber isto. O meu receio é que talvez saiba.
Não nos Calamos!
Fiquei logo vacinado no momento em que entrei para a direcção da CGTP-IN. A Isabel não foi eleita Secretária-Geral por ser mulher, mas por ter a experiência e as capacidades que essa tarefa exige. Aliás, há outras mulheres, quadros sindicais na Intersindical, que reunem as mesmas condições. E outros homens, também. É um sinal de vitalidade. Ora, independentemente destas questões essenciais, tem alguma relevância o facto de a Central ter uma Secretária-Geral pela primeira vez na sua história. Mas quase não se ouviram comentários sobre isso, sobretudo de quem coloca essa questão como central, ou até única. E quando se ouviram, foi para a desvalorizar. Porquê? Porque, enfim, a CGTP-IN ia continuar a ser o que tem sido e o que deve ser: uma forte organização de unidade, com sindicalistas de diferentes formações e perspectivas, com ou sem filiação partidária, em defesa do trabalho digno e contra o capital explorador. Uma chatice para algumas almas, muitas das quais menorizam o papel dos sindicatos, mesmo beneficiando de conquistas que não existiriam sem eles. Para elas, é sempre preciso reinventar a roda em vez de utilizar os poderosos instrumentos construídos pela luta organizada da classe trabalhadora. É preciso multiplicar, em vez de concentrar. (Ou enfraquecer, em vez de fortalecer.) É preciso fazer diferente, mas quando se faz diferente não devia ser assim. O problema de fundo é com a própria CGTP-IN, como é evidente. É uma espécie de pedra no sapato. As vozes dos trabalhadores em luta ouviram-se ontem na rua, respeitando as directivas das autoridades de saúde, que todos os portugueses devem seguir. Ouviram-se e era indispensável que se fizessem ouvir! A comparação de casos individuais, até do foro íntimo, com o Dia do Trabalhador, uma data com imenso peso social e democrático, não faz sentido. Quem ontem esteve nas iniciativas que decorrem pelo país não se apresentou a título individual, mas em solidariedade com colegas de profissão e com todos os trabalhadores, batalhando pelo bem comum. A defesa da vida não pode ser abstracta, mas concreta. Não é possível defender a vida contra a ameaça pandémica, sem defender a dignidade e a saúde daqueles que todos os dias sustentam e salvam vidas, os trabalhadores. Num contexto condicionado pela necessidade de conter e prevenir a pandemia, igualmente de extrema dificuldade para muitos trabalhadores e as suas famílias, estas vozes reuniram-se ontem, de modo criativo, respeitoso, lutador, com denúncias de atropelos laborais, informações fundamentais, reivindicações justas, e propostas urgentes. Como disse ontem a Secretária-Geral: “Alguns queriam calar-nos. Mas não nos calamos!”
Transformar e Melhorar o Mundo, Realmente
Queres realmente transformar e melhorar o mundo? Inscreve-te no sindicato representativo e combativo do teu sector. Num tempo em que o egoísmo individualista cresce, incentivado pela ordem social dominante, as pessoas perdem a memória histórica daquilo que devem aos sindicatos desde o séc. XIX. Mas sem a força massiva, união, democracia, solidariedade, e independência destas organizações de defesa dos trabalhadores contra a exploração e a injustiça, não teríamos:
- dias de descanso, nomeadamente o fim de semana;- intervalos obrigatórios no trabalho;
- licenças médicas e familiares pagas;
- licenças de parentalidade pagas;
- baixas médicas pagas;
- férias pagas;
- luta pela igualdade laboral entre mulheres e homens;
- redução da jornada de trabalho semanal de 60 horas;
- negociação colectiva que regule as condições de trabalho em sectores e empresas.
Gigantesca Aula de Democracia
Alguém, maravilhado, comentava há pouco por aqui que a iniciativa da CGTP-IN na Alameda parecia uma aula gigante de tai chi. Penso que foi, sobretudo, uma gigantesca aula de democracia.
Católicos Sindicalistas em Defesa da Justiça
A revista Família Cristã entrevistou-me para um artigo sobre dirigentes católicos no movimento sindical e falou também com Américo Monteiro, coordenador da Liga Operária Católica/Movimento de Trabalhores Cristãos e meu camarada na CGTP-IN. Bem haja! Parte do artigo com o título “Católicos Sindicalistas em Defesa da Justiça” está disponível aqui.