Lembrança

18.07.2020

Agora que a discussão em torno da decisão no concurso de recrutamento para dirigir o Museu do Aljube - Resistência e Liberdade acalmou, apetece-me lembrar um episódio.

Em 2016, editei um número da Cinema: Revista de Filosofia e da Imagem em Movimento sobre “A Filosofia de Marx”. Assinei a chamada de trabalhos sozinho, mas o número acabou por ser editado por mim e por um colega inglês, Mike Wayne. Acontece que quando me propus fazer este trabalho surgiu uma contestação, que até agradeço que tenha sido directa: que distanciamento crítico teria eu, sendo comunista e militante do Partido Comunista Português? O mais extraordinário é que em 2013 tinha editado um número da mesma revista sobre “Filosofia da Religião” e ninguém me colocou uma questão semelhante: que distanciamento crítico teria eu, sendo cristão católico e leigo da Ordem Dominicana? A questão foi ultrapassada, o número já tem uns anos e está acessível para quem o queira ler e comentar. O mesmo pode ser dito sobre o número anterior. Ambos foram feitos com o mesmo rigor científico. O marxismo e a religião são dois tópicos aos quais tenho dedicado muita da minha investigação.

Aprendi o seguinte com este acontecimento. Quando se fala na ausência de “distanciamento crítico” ou “independência” em relação a comunistas, regra geral o que se quer verdadeiramente dizer é isto: não é aceitável ser comunista para as pessoas que levantam essa questão, tendo em conta aquilo que elas sabem. Deixo de lado o pormenor, nada despiciendo, de que muitas vezes tais pessoas sabem pouco sobre o assunto. Eu dei-me sempre bem com o estudo e tenho plena consciência do que significa escolher ser comunista e escolher ser cristão. Essas escolhas são, para mim: por um lado, a melhor resposta ao mundo contraditório em que vivemos neste tempo, ferido de injustiças e desigualdades sociais sistémicas a partir de mecanismos de divisão, exploração, e dominação; por outro lado, a forma essencial de um caminho de reencontro com aquilo que somos na raiz. Nem o estalinismo (que nunca defendi, nem muitos outros comunistas) me faz abandonar o comunismo, nem a inquisição (que, mais uma vez, nunca defendi, nem muitos outros cristãos) me faz abandonar o cristianismo. A equivalência entre os termos é historicamente abusiva. Tomar a parte pelo todo é um absurdo argumentativo. Abandonar o “pronto-a-pensar”, a facilidade das pequenas gavetas estanques onde nos enfiam, e evitar basear discussões em caricaturas é que vale a pena. Pode ser um trabalho de uma vida inteira, mas merece o esforço.

O Som Hipócrita de um Apelo

14.07.2020

Um grupo de 83 milionários propôs a aplicação imediata de uma taxa permanente sobre as maiores fortunas do planeta para ajudar a “minimizar” os efeitos da crise. Parecem ter consciência que a crise também se vai fazer sentir sobre a venda dos produtos que as suas empresas comercializam. A arraia-miúda só serve para a labuta e o consumo, nunca para usufruir verdadeiramente dos frutos do seu trabalho. E que tal acabarmos com o que gera essa abundância, as grandes heranças e a intensa exploração? É que o mundo seria muito diferente, bem mais justo e humanizado, sem esses mecanismos que mantêm e aprofundam as desigualdades sociais. Assim dito, o apelo soa tão hipócrita como as iniciativas de “responsabilidade social” usadas para lavar a cara dos gigantes empresariais que, sistematicamente, fomentam a precariedade, descartam trabalhadores, praticam baixos salários, e violam direitos laborais.

Convite ao Autoritarismo

09.07.2020

Há quem pense que vivemos numa sociedade mais democrática quando se lançam suspeitas, se constroem especulações, se distorcem situações, se comenta sem ter informação, se expõe um olhar preconceituoso, com a leviandade de quem pouco ou nada pensa na dignidade dos outros. Para observar isto basta ler João Miguel Tavares e outros fazedores de opinião populista, que nunca se responsabiliza pelas suas calúnias. A cautela, o recolhimento, a ponderação, o rigor passam a ser qualidades que escasseiam. A história mostra que assim se agita um caldo cultural onde tudo parece desabar, numa voragem vista como incontrolável, até vir alguém “meter ordem nisto”. É a porta escancarada para o autoritarismo. Não contem comigo.

Não Deixar Morrer os Nossos Mortos

04.07.2020

“Nós não deixamos morrer os nossos mortos, pois eles permanecem intactos no alongamento do nosso futuro”: Jerónimo de Sousa a citar Mário Castrim na Sessão Comemorativa do Centenário de Mário Sacramento de hoje. A memória viva alimenta a determinação e propicia a emancipação.

A Mesma Luta

30.06.2020

Mas nós nunca confundimos o “colonialismo português” com o “povo de Portugal”, e temos feito tudo, na medida das nossas possibilidades, para preservar, apesar dos crimes cometidos pelos colonialistas portugueses, as possibilidades de uma cooperação eficaz com o povo de Portugal, numa base de independência, de igualdade de direitos e de reciprocidade de vantagens seja para o progresso da nossa terra, seja para o progresso do povo português. [...] O povo português está submetido há cerca de meio século a um regime que, pelas suas características, não pode ser deixado de ser chamado fascista. [...] A nossa luta é contra o colonialismo português. Nós somos povos africanos, ou um povo africano, lutando contra o colonialismo português, contra a dominação colonial portuguesa, mas não deixamos de ver a ligação que existe ente a luta antifascista e a luta anticolonialista.

Nós estamos absolutamente convencidos de que, se em Portugal se instalasse amanhã um governo que não fosse fascista, mas fosse democrático, progressista, reconhecedor dos direitos dos povos à autodeterminação e à independência, a nossa luta não teria razão de ser. Aí está a ligação íntima que pode existir entre a nossa luta e a luta antifascista em Portugal; mas também, vice-versa, estamos absolutamente convencidos de que, na medida em que os povos das colónias portuguesas avancem com a sua luta e se libertem totalmente de dominação colonial portuguesa, estarão contribuindo de uma maneira muito eficaz para a liquidação do regime fascista em Portugal. [...] Nós queremos entretanto exprimir claramente o seguinte: nós não confundimos a nossa luta, na nossa terra, com a luta do povo português; estão ligadas, mas nós, no interesse do nosso povo, combatemos contra o colonialismo português. Liquidar o fascismo em Portugal, se ele não se liquidar pela liquidação do colonialismo, isso é função dos próprios portugueses patriotas, que cada dia estão mais conscientes da necessidade de desenvolver a sua luta e de servir o melhor possível o seu povo.

AMÍLCAR CABRAL, Guiné-Bissau, Nação Africana Forjada na Luta