Vê-se o trágico declínio da política, cujo centro deve ser o bem comum, e o triunfo do individualismo contemporâneo nalgumas reacções à justa luta dos taxistas. Nessas manifestações fala apenas o consumidor, não o actor social consciente das suas acções. A ideologia é espessa, mas esta é uma discussão crítica. Na situação actual, passam a existir dois regimes com regras diferentes para um mesmo serviço e uma mesma profissão. Um com preço fixo, outro com preços desregulados. Um exigindo formação profissional, outro dispensando-a. Um com contingentes, outro sem contingentes. As viagens da Uber são baratas e fantásticas até as coisas correm mal numa transacção e a multinacional dizer que age apenas como intermediária, sem lhe poderem ser imputadas responsabilidades. A gigante já defendeu várias vezes que não disponibiliza sequer um serviço, mas somente uma plataforma de comunicação. Os motoristas não são empregados, são colaboradores independentes. Há automóveis que são dos próprios, pagos e mantidos por eles. Outros são alugados. O pouco dinheiro das viagens vai quase todo para a própria Uber, claro: quanto menos o cliente paga, maior é a taxa cobrada pela Uber aos motoristas. Alguns trabalhadores são proprietários dos meios de produção, mas nem assim ficam com o fruto do seu trabalho — suprema dominação. É uma questão de conflito de classes. O capitalismo pode usar muitas máscaras, mas a sua natureza mantém-se, aproveitando todas as oportunidades para intensificar a exploração no e do trabalho. É certo que as condições de trabalho neste transporte público devem ser melhoradas e o sector necessita de ser modernizado (ver a este propósito o Projecto de Resolução do PCP aprovado este ano na Assembleia da República). Mas a “uberização” da economia que se alastra não é um admirável mundo novo, é um claro retrocesso com brilho digital. Não nos deixemos encandear.